Putz grila...
Foi mal gente. Esqueci totalmente de me apresentar. Meu nome é Deb, mas você
pode me chamar de Déb. Tenho quatorze anos e estou no primeiro ano do ensino
médio, no Colégio Wanderley Juarez Lopez, mais conhecida como escola da
Embraer, porque é a empresa de aviões Embraer, aqui mesmo de São José dos
Campos, que banca tudo. Meus pais não poderiam pagar uma escola particular para
todos os quatro filhos, então optaram em não pagar pra nenhum. Por isso, quando
soube que a Embraer estava montando uma escola particular que sairia de grátis
para os alunos, resolvi fazer a prova e passei.
Desde então,
minha vida é uma rotina sem fim: entro às sete horas na escola, durmo até o
intervalo, as 9:30 (fala sério, quem não tem sono nas primeiras aulas da
manha?), como um lanche no refeitório (geralmente bisnaguinha com queijo
branco, que eu adoro e suco de abacaxi) e fico de papo até voltar pra aula. Lá
chegando, durmo até a hora do almoço, ao meio dia (fala sério gente, depois de
comer sinto um baita sono...).
Só começo a
me concentrar nos estudos depois do almoço. Sei, sei... Acabei de dizer que
depois de comer fico com sono, mas também, dormi a manhã inteira. Tenho que
fazer algo de útil, na escola, né?
Claro, isso
se não tiver outras coisas importantes que requerem minha atenção imediata.
Tipo o quê? Deixe-me ver... Se alguma de minhas amigas estiver com uma
cor de esmalte novo; ou se alguém da sala estiver precisando de conselhos amorosos
(área que manjo muito, diga-se de passagem... conheço tudo que rola nos
sites da net sobre relacionamentos... e não perco uma novela mexicana, vejo
todas no Youtube); ou ainda se meu Poo estiver precisando de cuidados
especiais.
Você não
sabe o que é um Poo? Fala sério, pessoa, em que mundo você vive? Poo é o App de
celular/tablet preferido de todos os seres do sexo feminino (e alguns do sexo
masculino, vai entender porque). É como um bichinho de estimação, mas o coco
dele não fede e ele não solta pelo pela casa. Perfeito!
Ai... Estou
perdendo o foco. Concentra!!! Pronto, agora ta melhor. Comecemos então daquela
terça-feira, o primeiro dia que senti aquele treco esquisito.
Eu estava na
segunda aula do período da tarde, aula do professor Tiburso. Sinceramente, eu
não tenho nada contra química, mas decorar a tabela periódica é muuuito chato.
Titânio,
Samário,
Cobalto, Germânio... cara, que nomes malísticos. Quando ouvi a primeira vez
pensei que era nome de alguns países lá do fim do mundo.
O que fazia
todo mundo gostar da aula era o Sr. Tiburso. Tipo assim... Ele é tipo o
professor mais da hora do mundo! Ele dava aula pra Pri no ano passado, de
ciências, no Colégio Possidônio. Cara, ele sim sabe dar uma aula. Ele leva
vídeos, slides, promove gincanas, palavras cruzadas e dá provas com consulta.
Apesar de baixinho (tipo, um metro e meio), ele impõe respeito ganhando nossa
amizade e confiança, não abusando do poder que tem como professor. Ele sempre
estava com camisa havaiana, calça brim e sapatênis cinza (péssimo modelito).
Seu cabelo estilo surfista não combina nada com seu estilo, e a franja vivia
caindo nos olhos castanhos.
Eu estava
até interessada, porque o Sr. Tiburso é simplesmente demais. Ele estava
recrutando atores entre os alunos pra fazer um teatro com os componentes da
tabela periódica, porque achava que assim aprenderíamos melhor.
- Então
pessoal – continuou o Sr. Tiburso, - já tem o Cobalski para o papel de Titânio,
o vilão. Nossa querida Carmem será a princesa do reino Arsênio. Faltam então,
alguns coadjuvantes...
Todos
estavam muito empolgados com a ideia, afinal, qualquer coisa que substituísse trabalhos
e tarefas era muito bem vinda. Tudo estava tranquilo, caminhando muito bem. Foi
então que o seu João entrou na sala. Sempre que ele vinha, alguém era levado
para a coordenação.
O seu João é
o coordenador do colégio. Um cara de altura mediana, careca, moreno e nariz de
chapoca de calcanhar. Era sério, mas muito legal e sempre preocupado com a
gente.
- Com
licença professor – disse o seu João. – A Srta. Bia pede para a aluna Deborah
Machado comparecer à sala da coordenação.
É... era
minha vez de enfrentar a justiça da Bia. Todos sabiam por que os alunos eram
chamados: os testes de aptidão profissional não alcançaram o resultado
esperado. Entende-se por resultado esperado o aluno mostrar aptidão ou vontade
de cursar engenharia, que é a profissão carro chefe da Embraer, empresa que
financia a escola.
- A Srta.
Deborah? – perguntou o Sr. Tiburso, com uma sobrancelha levantada. – Bom...
Será algo demorado, João? Estamos realmente ocupados aqui, e a saída de
qualquer aluno agora pode comprometer o andamento da aula.
Não falei
que o Sr. Tiburso era o máximo? Uma belezinha ele, tentando me ajudar. Mas
infelizmente não fununciou.
- Veja bem
Sr. Tiburso – começou o Sr. João, meio sem graça, - eu apenas cumpro ordens. Se
eu voltar sem a garota, terei que vir aqui novamente. O senhor pode liberá-la,
por favor?
“Tadinho do
seu João”, eu pensei. Olhei para o sr. Tiburso, que aguardava minha decisão.
Fiquei muito feliz por isso. Se eu não quisesse, sei que ele faria de tudo para
me ajudar. Mas não seria justo com o seu João. Acenei positivamente para o
professor e levantei.
- Ok então –
disse o Sr. Tiburso. – Mas, por favor, diga à Bia para não demorar, João. Estou
passando matéria de prova.
- Sim,
professor. Eu avisarei. Muito obrigado e com licença.
O Sr. João
se afastou da porta para eu passar. Fomos em silêncio para a escada, pois a
coordenação ficava no térreo, enquanto minha sala ficava no segundo andar. Sem
ter o que fazer me perdi em meus pensamentos, até que o Sr. João quebrou o
silêncio constrangedor.
- Deb, muito
obrigado por ter vindo comigo. Não sabe como me livrou de problemas hoje.
- Que é isso
seu João. Não é sua culpa. Afinal, está só fazendo o seu trabalho.
- Eu sei, é
pra isso que sou pago. Mas tenho que ser sincero com você, garota. Você tem um
grande coração. É muito nobre da sua parte se importar com um simples
coordenador como eu. Essa nobreza que você tem será muito útil nas coisas que
você enfrentará em seu futuro.
- Como
assim? – Confesso: não entendi bulhufas do que ele disse.
- Como o
tempo você verá. Mas uma coisa eu posso te garantir. Ninguém conseguirá fazer
com que você tome uma decisão que não queira. Siga seu coração, sempre, mas dê
espaço para a razão também. Assim, você andará por caminhos seguros e sólidos.
- Hum... –
foi tudo o que consegui dizer.
Chegamos à
frente da sala da Bia. Ele olhou pra mim, esperando eu me manifestar. Suspirei
e acenei. Seu João bateu na porta a voz da Bia soou lá dentro, estridente como
sempre.
- Sim?
- Sou eu,
João. Vim com a Sra. Machado.
- Ah, certo.
Mande-a entrar. Está dispensado João.
Olhei pra
ele vi o quanto ele se segurava para não dizer nada. Eu mesma estava nervosa.
Sabia que a Bia se julgava superior aos alunos, mas aos outros funcionários da
escola? Fala sério.
Seu João se
controlou. Olhou pra mim e deu um sorriso triste, bem forçado. Acenou com a mão
e foi embora pelo caminho que viemos. Respirei fundo e entrei.
A sala da
diretora Bia era um luxo só. Sua mesa era de mogno escuro, com um laptop, uma
pasta aberta, uma porta-caneta e um porta retrato de três crianças, seus
sobrinhos, na Disney. Atrás dela, de frente para quem entrava na sala, estava
uma foto de Bia com a presidenta da república. Em baixo da janela, que dava
para a quadra de vôlei tinha uma mesinha de café, com bolachas, chá e (lógico)
café. Do lado oposto à janela tinha uma bonita estante de marfim, repleta de
livros.
Eu entrei e
esperei. Bia estava lendo algo na pasta que estava sobe a mesa, e eu tive a
desconfortável sensação que era sobre mim. Seu cabelo loiro estava preso em um
coque com uma caneta prateada. Ela estava de conjunto verde escuro, calça e
terninho, tendo por baixo uma blusinha branca (a mesma que ela usava todo dia,
por isso, os alunos achavam que ela não tomava banho). Usava óculos com aro de
tartaruga rosa. Seus olhos azuis movendo-se, captando toda a extensão das
folhas na pasta.
Depois do
que pareceu ser uma hora, Bia ergueu os olhos dos papéis e me olhou. Por mais
chata que fosse, tinha que admitir que ela era bonita. E nova. Ela tinha apenas
vinte e cinco anos, e já era diretora de um colégio de renome na cidade, como o
Juarez. Ah, lógico... ela era insuportavelmente chata.
- Sente-se.
Sentei e
esperei. Já tinha tido outros encontros como ela, e aprendi, da pior maneira,
que é melhor não falar nada, a não ser responder o que ela pergunta. Acaba bem
mais rápido.
- Deborah,
tudo bem com você?
- Sim, Srta
Bia.
- Ótimo.
Como estão as coisas em casa?
Era sempre
assim. Ela perguntava se estava tudo bem e começava um interrogatório intenso.
Sei lá pra que.
- Bem,
graças a Deus.
- Que bom.
Os deuses tem se alegrado de vocês então.
La estava
ela com esse papo de deuses. A Bia era daquelas que acreditava em deuses, tipo
os deuses gregos. Mas pelo que eu entendia, ela achava que o mundo estaria
melhor se os pais dos deuses, os Titãs, reinassem hoje no lugar de seus filhos.
Algo assim. Estranho.
Como tinha
que responder algo, murmurei alguma coisa tipo “hum, certo”.
- Bem –
continuou a Bia, - estive revisando seus testes de aptidão.
Como coisa
que eu não soubesse disso.
- Ah... os
testes (quando não sabe o que dizer, finja de tonta).
- Vi aqui
que você está interessada no curso de Publicidade e Propaganda.
Não era uma
pergunta, então não respondi nada.
- Aqui
consta também uma forte aptidão para artes em geral. Diga-me, o que você
realmente quer fazer? Em que quer se formar?
E
finalmente, o bote.
- Bom, como
a senhorita acabou de dizer, quero estudar Publicidade e Propaganda.
Ela ficou me
analisando por alguns momentos, fingindo-se decepcionada. Depois, seus olhos ficaram
frios, apesar do sorriso forçado. Comecei a me sentir estranha, um certo
desconforto na barriga.
- Sabe
Deborah, você é uma das melhores alunas da sua turma – disse ela, sempre de
olho em mim. – Não sei como consegue isso, já que dorme metade do dia e na
outra metade não é tão interessada assim nas matérias. Tive algumas reclamações
desse seu comportamento, mas alguns professores alegaram que os resultados de
suas provas e trabalhos falavam por si só.
Mais um
momento de silêncio constrangedor.
- Eu
gostaria então que você me explicasse como consegue fazer isso.
- Como
consigo... o que?
Ela então
deu um sorriso tão sarcástico que comecei a ficar nervosa.
- Bem... como consegue ir bem em todas as matérias sem
o mínimo de esforço.
Minhas mãos
começaram a arder e eu suava muito. Estava ficando muito nervosa. Olhei para
Bia e ela estava estranha. Havia uma imagem, tipo holográfica em cima dela,
meio que se fundindo com ela.
- Algum
problema, querida?
Eu não
conseguia responder.
- Acho que
podemos parar com essa brincadeira irritante, certo? Eu sei quem você é, filha
do Tempo.
Filha do
tempo? Que raio de nome é esse? O problema é que eu não conseguia responder. Concentrava-me
muito em não desmaiar ou vomitar. Agora, com certeza estava vendo coisas. Bia
estava verde, com manchas amarelas. Suas mãos estavam estranhas... suas unhas
crescendo.
- Sabe –
disse Bia, - não sei como pensou que eu não prestaria atenção em você, no meio
de todos esses humanos. Quem te escondeu aqui?
Ela levantou
e veio andando em minha direção bem devagar, dando a volta na mesa. Andando
não, rastejando. Suas pernas foram substituídas por uma longa e grossa cauda
escamosa. Meus punhos estavam fechados, e eu sentia minhas unhas penetrando
minhas mãos. Bia apertou meu pescoço com sua garra direita. Chegou bem perto do
meu rosto, e vi seus olhos em fendas verticais, como de répteis. Seu bafo era
horrível, como se ela nunca tivesse visto uma escova de dentes na vida. No
lugar de seus dentes eu vi presas de animais. Sua língua era bifurcada como a
de uma cobra.
- Vou usar
você, garota do tempo. Você vai servir de exemplo para os malditos deuses. Por
acaso...
Eu gritei.
Com todas as minhas forças eu desejei que aquilo parasse, aquele pesadelo
esquisito. Foi quando aconteceu. Tudo pareceu congelar. Bia parou de falar e
seu aperto afrouxou. Eu fiquei sem entender, mas tentei me livrar daquelas
garras a qualquer custo. Foi difícil no começo, mas cosegui tirar a garra do
monstro do meu pescoço. Bia não se movia.
Eu cai no
chão e se arrastei pra longe da Bia. Quando a adrenalina acabou, eu suspirei, e
tudo pareceu voltar ao normal (tão normal quanto pode ser uma cobra esquisita
tentar te matar). Bia continuou falando como se nada tivesse acontecido.
- ... você
achou que... o que...
Antes que
pudesse entender o que aconteceu, uma luz tão forte como o sol brilhou na
janela. A última coisa que consegui ver antes de desmaiar foi um homem coberto
por chamas aparecer na sala e envolver o pescoço de Bia com uma mão poderosa e
em chamas, enquanto o monstro gritava.
- Acesse os demais capítulos neste link.
- Acesse o próximo capítulo - Capítulo 2 – Encontro dois gatinhos bem grandes...
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