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Capítulo 1 - Churrasco de cobra

SINCERAMENTE, EU AINDA NÃO ENTENDO COMO TUDO ACONTECEU TÃO RÁPIDO. Tipo assim, meus hobbies sempre foram fazer compras com minhas irmãs na Renner, brincar com meu Poo e ficar de papo com o Rod e a Pri (querida irmã mais nova que não larga do meu pé). Em pouco tempo, eu estava a caminho do último Portal do Tempo no planeta, que lógico, tinha que ser na África (bem longe de São José dos Campos, onde moro). Tudo isso pra voltar no tempo, tipo uns cem mil anos no passado, salvar o reino de Ícon de ser destruído por um parente meu com problemas na cabeça, impedir os anjos e deuses de começarem a Segunda Guerra Mundial de Etherion e restaurar a Ordem dos Guardiões Primervos, que guardavam a Gema do Infinito.

Putz grila... Foi mal gente. Esqueci totalmente de me apresentar. Meu nome é Deb, mas você pode me chamar de Déb. Tenho quatorze anos e estou no primeiro ano do ensino médio, no Colégio Wanderley Juarez Lopez, mais conhecida como escola da Embraer, porque é a empresa de aviões Embraer, aqui mesmo de São José dos Campos, que banca tudo. Meus pais não poderiam pagar uma escola particular para todos os quatro filhos, então optaram em não pagar pra nenhum. Por isso, quando soube que a Embraer estava montando uma escola particular que sairia de grátis para os alunos, resolvi fazer a prova e passei.

Desde então, minha vida é uma rotina sem fim: entro às sete horas na escola, durmo até o intervalo, as 9:30 (fala sério, quem não tem sono nas primeiras aulas da manha?), como um lanche no refeitório (geralmente bisnaguinha com queijo branco, que eu adoro e suco de abacaxi) e fico de papo até voltar pra aula. Lá chegando, durmo até a hora do almoço, ao meio dia (fala sério gente, depois de comer sinto um baita sono...).

Só começo a me concentrar nos estudos depois do almoço. Sei, sei... Acabei de dizer que depois de comer fico com sono, mas também, dormi a manhã inteira. Tenho que fazer algo de útil, na escola, né?

Claro, isso se não tiver outras coisas importantes que requerem minha atenção imediata. Tipo o quê? Deixe-me ver...  Se alguma de minhas amigas estiver com uma cor de esmalte novo; ou se alguém da sala estiver precisando de conselhos amorosos (área que manjo muito, diga-se de passagem... conheço tudo que rola nos sites da net sobre relacionamentos... e não perco uma novela mexicana, vejo todas no Youtube); ou ainda se meu Poo estiver precisando de cuidados especiais.

Você não sabe o que é um Poo? Fala sério, pessoa, em que mundo você vive? Poo é o App de celular/tablet preferido de todos os seres do sexo feminino (e alguns do sexo masculino, vai entender porque). É como um bichinho de estimação, mas o coco dele não fede e ele não solta pelo pela casa. Perfeito!

Ai... Estou perdendo o foco. Concentra!!! Pronto, agora ta melhor. Comecemos então daquela terça-feira, o primeiro dia que senti aquele treco esquisito.

Eu estava na segunda aula do período da tarde, aula do professor Tiburso. Sinceramente, eu não tenho nada contra química, mas decorar a tabela periódica é muuuito chato. Titânio,
Samário, Cobalto, Germânio... cara, que nomes malísticos. Quando ouvi a primeira vez pensei que era nome de alguns países lá do fim do mundo.

O que fazia todo mundo gostar da aula era o Sr. Tiburso. Tipo assim... Ele é tipo o professor mais da hora do mundo! Ele dava aula pra Pri no ano passado, de ciências, no Colégio Possidônio. Cara, ele sim sabe dar uma aula. Ele leva vídeos, slides, promove gincanas, palavras cruzadas e dá provas com consulta. Apesar de baixinho (tipo, um metro e meio), ele impõe respeito ganhando nossa amizade e confiança, não abusando do poder que tem como professor. Ele sempre estava com camisa havaiana, calça brim e sapatênis cinza (péssimo modelito). Seu cabelo estilo surfista não combina nada com seu estilo, e a franja vivia caindo nos olhos castanhos.

Eu estava até interessada, porque o Sr. Tiburso é simplesmente demais. Ele estava recrutando atores entre os alunos pra fazer um teatro com os componentes da tabela periódica, porque achava que assim aprenderíamos melhor.

- Então pessoal – continuou o Sr. Tiburso, - já tem o Cobalski para o papel de Titânio, o vilão. Nossa querida Carmem será a princesa do reino Arsênio. Faltam então, alguns coadjuvantes...

Todos estavam muito empolgados com a ideia, afinal, qualquer coisa que substituísse trabalhos e tarefas era muito bem vinda. Tudo estava tranquilo, caminhando muito bem. Foi então que o seu João entrou na sala. Sempre que ele vinha, alguém era levado para a coordenação.

O seu João é o coordenador do colégio. Um cara de altura mediana, careca, moreno e nariz de chapoca de calcanhar. Era sério, mas muito legal e sempre preocupado com a gente.

- Com licença professor – disse o seu João. – A Srta. Bia pede para a aluna Deborah Machado comparecer à sala da coordenação.

É... era minha vez de enfrentar a justiça da Bia. Todos sabiam por que os alunos eram chamados: os testes de aptidão profissional não alcançaram o resultado esperado. Entende-se por resultado esperado o aluno mostrar aptidão ou vontade de cursar engenharia, que é a profissão carro chefe da Embraer, empresa que financia a escola.

- A Srta. Deborah? – perguntou o Sr. Tiburso, com uma sobrancelha levantada. – Bom... Será algo demorado, João? Estamos realmente ocupados aqui, e a saída de qualquer aluno agora pode comprometer o andamento da aula.

Não falei que o Sr. Tiburso era o máximo? Uma belezinha ele, tentando me ajudar. Mas infelizmente não fununciou.

- Veja bem Sr. Tiburso – começou o Sr. João, meio sem graça, - eu apenas cumpro ordens. Se eu voltar sem a garota, terei que vir aqui novamente. O senhor pode liberá-la, por favor?

“Tadinho do seu João”, eu pensei. Olhei para o sr. Tiburso, que aguardava minha decisão. Fiquei muito feliz por isso. Se eu não quisesse, sei que ele faria de tudo para me ajudar. Mas não seria justo com o seu João. Acenei positivamente para o professor e levantei.

- Ok então – disse o Sr. Tiburso. – Mas, por favor, diga à Bia para não demorar, João. Estou passando matéria de prova.

- Sim, professor. Eu avisarei. Muito obrigado e com licença.

O Sr. João se afastou da porta para eu passar. Fomos em silêncio para a escada, pois a coordenação ficava no térreo, enquanto minha sala ficava no segundo andar. Sem ter o que fazer me perdi em meus pensamentos, até que o Sr. João quebrou o silêncio constrangedor.

- Deb, muito obrigado por ter vindo comigo. Não sabe como me livrou de problemas hoje.

- Que é isso seu João. Não é sua culpa. Afinal, está só fazendo o seu trabalho.

- Eu sei, é pra isso que sou pago. Mas tenho que ser sincero com você, garota. Você tem um grande coração. É muito nobre da sua parte se importar com um simples coordenador como eu. Essa nobreza que você tem será muito útil nas coisas que você enfrentará em seu futuro.

- Como assim? – Confesso: não entendi bulhufas do que ele disse.

- Como o tempo você verá. Mas uma coisa eu posso te garantir. Ninguém conseguirá fazer com que você tome uma decisão que não queira. Siga seu coração, sempre, mas dê espaço para a razão também. Assim, você andará por caminhos seguros e sólidos.

- Hum... – foi tudo o que consegui dizer.

Chegamos à frente da sala da Bia. Ele olhou pra mim, esperando eu me manifestar. Suspirei e acenei. Seu João bateu na porta a voz da Bia soou lá dentro, estridente como sempre.

- Sim?

- Sou eu, João. Vim com a Sra. Machado.

- Ah, certo. Mande-a entrar. Está dispensado João.

Olhei pra ele vi o quanto ele se segurava para não dizer nada. Eu mesma estava nervosa. Sabia que a Bia se julgava superior aos alunos, mas aos outros funcionários da escola? Fala sério.

Seu João se controlou. Olhou pra mim e deu um sorriso triste, bem forçado. Acenou com a mão e foi embora pelo caminho que viemos. Respirei fundo e entrei.

A sala da diretora Bia era um luxo só. Sua mesa era de mogno escuro, com um laptop, uma pasta aberta, uma porta-caneta e um porta retrato de três crianças, seus sobrinhos, na Disney. Atrás dela, de frente para quem entrava na sala, estava uma foto de Bia com a presidenta da república. Em baixo da janela, que dava para a quadra de vôlei tinha uma mesinha de café, com bolachas, chá e (lógico) café. Do lado oposto à janela tinha uma bonita estante de marfim, repleta de livros.

Eu entrei e esperei. Bia estava lendo algo na pasta que estava sobe a mesa, e eu tive a desconfortável sensação que era sobre mim. Seu cabelo loiro estava preso em um coque com uma caneta prateada. Ela estava de conjunto verde escuro, calça e terninho, tendo por baixo uma blusinha branca (a mesma que ela usava todo dia, por isso, os alunos achavam que ela não tomava banho). Usava óculos com aro de tartaruga rosa. Seus olhos azuis movendo-se, captando toda a extensão das folhas na pasta.

Depois do que pareceu ser uma hora, Bia ergueu os olhos dos papéis e me olhou. Por mais chata que fosse, tinha que admitir que ela era bonita. E nova. Ela tinha apenas vinte e cinco anos, e já era diretora de um colégio de renome na cidade, como o Juarez. Ah, lógico... ela era insuportavelmente chata.

- Sente-se.

Sentei e esperei. Já tinha tido outros encontros como ela, e aprendi, da pior maneira, que é melhor não falar nada, a não ser responder o que ela pergunta. Acaba bem mais rápido.

- Deborah, tudo bem com você?

- Sim, Srta Bia.

- Ótimo. Como estão as coisas em casa?

Era sempre assim. Ela perguntava se estava tudo bem e começava um interrogatório intenso. Sei lá pra que.

- Bem, graças a Deus.

- Que bom. Os deuses tem se alegrado de vocês então.

La estava ela com esse papo de deuses. A Bia era daquelas que acreditava em deuses, tipo os deuses gregos. Mas pelo que eu entendia, ela achava que o mundo estaria melhor se os pais dos deuses, os Titãs, reinassem hoje no lugar de seus filhos. Algo assim. Estranho.

Como tinha que responder algo, murmurei alguma coisa tipo “hum, certo”.

- Bem – continuou a Bia, - estive revisando seus testes de aptidão.

Como coisa que eu não soubesse disso.

- Ah... os testes (quando não sabe o que dizer, finja de tonta).

- Vi aqui que você está interessada no curso de Publicidade e Propaganda.

Não era uma pergunta, então não respondi nada.

- Aqui consta também uma forte aptidão para artes em geral. Diga-me, o que você realmente quer fazer? Em que quer se formar?

E finalmente, o bote.

- Bom, como a senhorita acabou de dizer, quero estudar Publicidade e Propaganda.

Ela ficou me analisando por alguns momentos, fingindo-se decepcionada. Depois, seus olhos ficaram frios, apesar do sorriso forçado. Comecei a me sentir estranha, um certo desconforto na barriga.

- Sabe Deborah, você é uma das melhores alunas da sua turma – disse ela, sempre de olho em mim. – Não sei como consegue isso, já que dorme metade do dia e na outra metade não é tão interessada assim nas matérias. Tive algumas reclamações desse seu comportamento, mas alguns professores alegaram que os resultados de suas provas e trabalhos falavam por si só.

Mais um momento de silêncio constrangedor.

- Eu gostaria então que você me explicasse como consegue fazer isso.

- Como consigo...  o que?

Ela então deu um sorriso tão sarcástico que comecei a ficar nervosa.

- Bem...  como consegue ir bem em todas as matérias sem o mínimo de esforço.

Minhas mãos começaram a arder e eu suava muito. Estava ficando muito nervosa. Olhei para Bia e ela estava estranha. Havia uma imagem, tipo holográfica em cima dela, meio que se fundindo com ela.

- Algum problema, querida?

Eu não conseguia responder.

- Acho que podemos parar com essa brincadeira irritante, certo? Eu sei quem você é, filha do Tempo.

Filha do tempo? Que raio de nome é esse? O problema é que eu não conseguia responder. Concentrava-me muito em não desmaiar ou vomitar. Agora, com certeza estava vendo coisas. Bia estava verde, com manchas amarelas. Suas mãos estavam estranhas... suas unhas crescendo.

- Sabe – disse Bia, - não sei como pensou que eu não prestaria atenção em você, no meio de todos esses humanos. Quem te escondeu aqui?

Ela levantou e veio andando em minha direção bem devagar, dando a volta na mesa. Andando não, rastejando. Suas pernas foram substituídas por uma longa e grossa cauda escamosa. Meus punhos estavam fechados, e eu sentia minhas unhas penetrando minhas mãos. Bia apertou meu pescoço com sua garra direita. Chegou bem perto do meu rosto, e vi seus olhos em fendas verticais, como de répteis. Seu bafo era horrível, como se ela nunca tivesse visto uma escova de dentes na vida. No lugar de seus dentes eu vi presas de animais. Sua língua era bifurcada como a de uma cobra.

- Vou usar você, garota do tempo. Você vai servir de exemplo para os malditos deuses. Por acaso...

Eu gritei. Com todas as minhas forças eu desejei que aquilo parasse, aquele pesadelo esquisito. Foi quando aconteceu. Tudo pareceu congelar. Bia parou de falar e seu aperto afrouxou. Eu fiquei sem entender, mas tentei me livrar daquelas garras a qualquer custo. Foi difícil no começo, mas cosegui tirar a garra do monstro do meu pescoço. Bia não se movia.

Eu cai no chão e se arrastei pra longe da Bia. Quando a adrenalina acabou, eu suspirei, e tudo pareceu voltar ao normal (tão normal quanto pode ser uma cobra esquisita tentar te matar). Bia continuou falando como se nada tivesse acontecido.

- ... você achou que... o que...

Antes que pudesse entender o que aconteceu, uma luz tão forte como o sol brilhou na janela. A última coisa que consegui ver antes de desmaiar foi um homem coberto por chamas aparecer na sala e envolver o pescoço de Bia com uma mão poderosa e em chamas, enquanto o monstro gritava.



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